Tive paciência e consegui mais ou menos saber quantos discos gravou SUN RA e sua ARKESTRA: foram 136. Quer em bom português? Contei cento e trinta e seis discos!
Entre os mitos que o cercam está o de ter criado a própria gravadora, “EL SATURN RECORDS”, prá lá de singular. E quase-famosa por ter feito LPS sem grandes sofisticações gráficas, mas artisticamente instigantes e muito difíceis de serem encontrados pelaí!
SUN RA foi um dos primeiros independentes.
Colecionador sortudo e destemido será quem achar algum daqueles discos. São raros e preciosos!
Quem se interessar pelo “MAGO” deve, também, dar uma olhada na produção do cara por outras gravadoras, como a também cult ESP, e a IMPULSE.
Mas, pode ir direto para as reedições em CDS, da suíça EVIDENCE MUSIC, que vem mapeando a carreira do cara com zelo e respeito.
SUN RÁ era de ecletismo total! Mas, à sua maneira peculiar e subversiva. Teve carreira longa e impressionante.
Começou na década de 1940, e trabalhou compulsivamente por mais de 50 anos! Era superdotado e workholic como JOHN MAYALL ou MILES DAVIS.
Acompanhou grupos de DOO-WOP; gravou BE-BOP; deu canjas várias na transição da música negra dos anos 1940 ao R&B em voga.
Envolveu-se com todo tipo de JAZZ, do RAG ao ROCK; gravou BLUES; meteu o criativo bedelho em mil coisinhas excêntricas e esotéricas.
DIZZY GILLESPIE e THELONIOUS MONK eram fãs se SUN RÁ.
Em 1956 gravou, inclusive, com um “esperma ensandecido” (PORRA-LOCA, para os menos recatados) chamado “YOCHANAN, A SPACE AGE VOCALIST”… um híbrido de cantor de R&B, Proto-RAPPER, ou simplesmente um preto maluco! Tudo isso está no CD duplo “SINGLES”, aqui na postagem!!!!
SUN RA propôs e conseguiu um jeito novo de “re-rever” a música de formas diferentes e nunca feitas! Era criativo, insistente e desbravador. Usou teclados eletrônicos ainda nos anos 1950; abusou de sintetizadores e tudo o que fosse ligado às vanguardas musicais esvoaçantes, ou que o ligasse às coisas cósmicas, míticas, místicas, ou simplesmente fora do eixo… e antes que o PINK FLOYD pensasse nisso…
SUN RA era uma METAMORFOSE GALOPANTE, foi um dos criadores do AFRO-JAZZ.
Ao contrário do FREE JAZZ, de ORNETTE COLEMAN, onde a liberdade para improvisar era total, a proposta AVANT GARDE de SUN RA é uma construção/desconstrução ativa, mesmo que não-programada, de uma obra musical que requer disciplina, técnica e sensibilidade.
SUN RA é um arquiteto do caos sonoro inteligível. Intervinha nas gravações, trocando músicos durante a execução dos trechos. Dava o tom, a ideia; e se não gostasse do som de um trombone, digamos, fazia o trompetista, por exemplo, executar aquela parte do jeito que quisesse. E, se RA concordasse, ia juntando, gravando tudo de acordo com a sua percepção e gosto.
SUN RA acrescentava ou retirava instrumentos, ideias, frases; e o resultado é uma colagem sonora com liberdade vigiada, livre ‘ma, non tropo”. Fica estranho, mas é coeso e musicalmente instigante. A metáfora que me ocorre, é consertar o motor do avião em pleno voo…
Ele rompeu e subverteu a ideia inicial do FREE JAZZ, e está nas raízes da FUSION, DO ROCK PROGRESSIVO, e é precursor do “AFRO-FUTURISMO” jazístico. SUN RA é um compositor, arranjador, maestro maluco, que dirige sua orquestra ao sabor de si mesmo.
Diferentemente do FREE JAZZ, onde cada um tocava sua parte sem a censura de outros; nos discos dele o comandante supremo é SUN RA. Ele é o diretor de obras do caos. Não sabia onde queria chegar, mas chegava prospectando, caminhando, perscrutando, tocando, construindo, destruindo, mudando a música…
Depois de gravada, claro, restava a obra composta: original, intuitiva, provavelmente não repetível, mas “organizada”, porque “petrificada” em disco.
Se o FREE JAZZ é obra coletiva, o AVANT – GARDE parece, em geral, produto individual: o conceito é do artista.
A história da música popular é um caminho tortuoso, desruptivo, e, ao mesmo tempo, previsível. Muita coisa díspar convive ao mesmo tempo.
Para muitos, o ápice da sofisticação na música popular foi a GRANDE CANÇÃO AMERICANA, de GERSHWIN, COLE PORTER…; e na voz de ELLA, BILLIE, SINATRA, entre vários.
A BOSSA NOVA talvez tenha sido o último ato da grandeza musical “tradicional conservadora”. E, tudo isto, culminando no final dos anos 1950 do século passado!
No mesmo espaço/tempo, o R&B e o ROCK AND ROLL comiam solto com incontáveis grupos de DOO-WOP, ELVIS PRESLEY e contemporâneos.
Além das experiências radicais na MÚSICA CLÁSSICA contemporânea, a ELETROACÚSTICA, por exemplo; à época estavam em curso subvertendo o gosto tradicional, e acrescentando elementos de ruptura.
No BRASIL, em 1959, a compositora JOCY DE OLIVEIRA, contestara sarcasticamente a BOSSA NOVA, em seu LP.
Mas, em 1961, executou no TEATRO MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO a primeira obra de música ELETROACÚSTICA do BRASIL. JOCY esteve e está além de seu tempo…
Talvez a transição entre a década de 1950 e a de 1960 tenha sido o período histórico onde ocorreram as mais significativas erupções e terremotos estéticos.
SUN RA não existiria sem esse amplo painel, composto por contradições procurando sínteses, e de saltos à frente. A entropia foi o FREE JAZZ, sucedido por uma quase-reorganização da vanguarda com o AVANT-GARDE.
Ao mesmo tempo, vieram os Beatles e os formatos tradicionais simplificados tomaram a cena novamente.
Até que…
SUN RA morreu aos 79 anos, em 1993, mas sua ARKESTRA continuou sob a direção, talvez até hoje, do saxofonista MARSHALL ALLEN, que já a trouxe ao Brasil.
Quando eu morrer, vou-me embora pra SATURNO, de onde SUN RA disse que veio. Porque lá sou amigo do Rei…
