Memórias a gente escava do jeito que se faz nas buscas arqueológicas. Vai fundo, porém atenta e cuidadosamente. Elas não são nítidas, e muito menos ressurgem completas.
Então, vez por outra, recupera-se algum objeto, algo perdido sob escombros, encoberto pelo esquecimento.
Não costumo escrever sobre o que não domino com certa proficiência. Não sou crítico ou pesquisador de MPB. Tento, apenas, realçar memórias para mim mesmo. Eu gosto de música, e por isso ouvi a ELIS REGINA em vários contextos. Aliás, muita e muita gente, também.
Eu recordo um show que assisti, acho que no TEATRO PARAMOUNT, em SAMPA. Provavelmente, em 1966/1967. Ganhamos ingressos, eu e meu “amigoprimo” BETÃO, talvez de nossos tios JULIANO ou ABRAMO GARINI, ambos músicos profissionais.
Foi evento exclusivo, penso, promovido pela ORDEM DOS MÚSICOS DO BRASIL. Estavam lá os que faziam sucesso, e os artistas em ascensão.
Foi ecumênico: gente da MPB de tudo o que era jeito: BOSSA NOVA, BREGAS e SAMBISTAS… E o pessoal da TROPICÁLIA e da JOVEM GUARDA. Todos revezando aparentemente sem ordem mais explícita. Tocavam ou cantavam uma ou duas músicas, “AND THE SHOW GOES ON…
Claro, eu tinha uns 14 anos, se tanto… e meu negócio era o POP/ROCK internacional, universo que me fascinava desde a infância.
Lembro pouco. Uma das bandas que se apresentou foi THE REBELS, instrumental SURF/BEAT, na linha dos SHADOWS, dos VENTURES, e dos JORDANS – também brasileiros. Eram razoáveis. E quase com certeza MARTINHA, WANDERLEIA, DEMÉTRIUS (não, não o MAGNOLLI…) ANTONIO MARCOS… gente da JOVEM GUARDA…
Houve a turma do samba: MOREIRA DA SILVA, e GERMANO MATHIAS eu lembro bem; e alguns bregas irremissíveis, como RINALDO CALHEIROS e SILVANA. E gente flanando entre o auge e a decadência. Mas, todos conhecidos.
Fiquei impressionado com uma garota muito jovem, tremendamente expressiva, e de voz enorme que atravessava o meu estômago e batia contra a muralha de toda a plateia: era MARIA BETHANIA! Cantou CARCARÁ seu incrível, contestatário e enorme sucesso, presente em todas as rádios do país!
BETHANIA está entre as performances mais esfuziantes e inesquecíveis que assisti em toda a minha vida! Não era e não é minha praia; mas, não havia como não admirar o talento abundante e agressivo, aplicado com a precisão de um BOTICÃO arrancando um molar…
Certa vez, ouvi no rádio um quase obituário exposto pelo JOÃO MARCELO BÔSCOLI, filho de ELIS, e o PROFESSOR PASQUALE.
O mestre é onipresente lutador para que a gente aprenda melhor o português. Imediatamente recordei que a ELIS REGINA também estivera naquele SHOW. Apareceu nitidamente dentro da minha cabeça. Eu a revi no palco!!!
Por muito tempo, eu não a compreendi adequadamente. Achava que sua bela, potente, enorme extensão vocal, era utilizada de forma explícita demais.
No entanto, fui percebendo que era isso mesmo que tinha de ter sido feito: ora, se ARETHA FRANKLIN podia, por que não ELIS?
Duas cantoras populares, com imensos atributos explorados e produzidos para se destacarem.
Elas sempre me impressionaram. Eu gosto muito dos LONG PLAYS de ELIS como JAIR RODRIGUES, acompanhados pelo JONGO TRIO. Os discos foram batizados DOIS NA BOSSA, volumes 1,2, e 3.
Aprecio, mais ainda, o espetacular e imprescindível “O FINO DO FINO”, com o ZIMBO TRIO, de 1965!
São quatro shows da melhor fusão SAMBA/JAZZ expandidos ao estado da arte! É onde a versatilidade vocal e interpretativa de ELIS REGINA se realça!
A imensa discografia e repertório de ELIS descobre e desvenda a tradição e a modernidade crescente da MPB.
Ela revelou ou deu oportunidades para GILBERTO GIL, MILTON NASCIMENTO, CHICO BUARQUE, BELCHIOR, ALDIR BLANC.. e tantos e muitos mais.
Inclusive “reesculpiu” a música de ADONIRAN BARBOSA, gênio único da velha guarda, culturalmente relevante, e em plena forma estética.
A trajetória de ELIS se refina com a maturidade e consolidação de nossa melhor música! Que o diga o clássico e cult imprescindível ELIS & TOM (JOBIM, claro!), gravado em 1974?
Nessa transversal do tempo, ELIS foi cantando cada vez melhor! Aperfeiçoou a emissão da voz, conteve exageros e explicitudes algo teatrais. E se tornou paulatinamente mais moderna e atualizada.
A discografia de ELIS REGINA está composta por 6 discos ao vivo, 18 gravados em estúdio, e mais 6 discos póstumos. Há participação em outros projetos. Seja como for, 30 discos para carreira de pouco mais de 20 anos é muita coisa!
O BOX aqui postado compreende os LONG PLAYS originais por ela gravados. São os 23 LPS de carreira e duas coletâneas exclusivas.
Ficou fora ‘VIVA A BROTOLÂNDIA”, 1962, sua estreia fazendo algo tipo CELY CAMPELLO. É fora de foco. Não era a dela.
Artistas e todos os que viveram nas década de 1960 /1970, têm a sina e a glória de haver sofrido ou participado de transições políticas, comportamentais, artísticas e filosóficas. Momentos cruciais e excruciantes.
ELIS REGINA da mesma forma que JIM MORRISON, JANIS JOPLIN e JIMI HENDRIX, para ficar nos maiorais seus contemporâneos, foi vítima de excessos, do trabalho insano, e da vida vertiginosa daqueles tempos dilacerantes.
Passaram todos pelo frigorífico existencial. Carnes açoitadas, moídas, e consumidas. Gente que teve muita vida potencial desperdiçada.
Para eles todos restou a glória dos mártires. Para nós, ficou o vácuo da perda precoce dos que ainda tinham muito para produzir e legar.
Lágrimas eternas e nada ocultas para ELIS. Ela merece; e nós precisamos!
