GARY BROOKER, BANDLEADER, E A FORMIDÁVEL SAGA DO PROCOL HARUM

Escrever sobre a convivência de 54 anos é, ao mesmo tempo uma honra, e a visão da minha própria finitude.
A partida recente de GARY BROOKER, em 19 de fevereiro de 2022, me faz pensar nisso. A cada morte de alguém significativo eu acelero o caminhar em direção ao inevitável…
Não gosto de pieguices. E muito menos dos sentimentos mal definidos aflorados – e que sempre assolam.
Procuro o tempo inteiro tornar as impressões inteligíveis. Mas, não abro mão de viajar por mim mesmo durante a confecção do texto.
Então, vou ziguezaguear em busca da memória de emoções soterradas. Nunca é apenas a história que me interessa. Mas, como a vivi – e ainda vivo! E, parafraseando a turma dos anos 1970, o texto que saiu é um MORRETÃO, de tão longo; e a minha sentida homenagem à companhia que ele me fez e ainda fará.
A DESCOBERTA E O MITO
Lá por setembro de 1967 – acho ou invento – ouvi falar do PROCOL HARUM pela primeira vez.
Eu era “office boy” na diretoria de um banco que não existe mais há décadas, o NOVO MUNDO. E a secretária de um figurão passou uma lista de discos, o lugar onde comprar, e uma grana rombuda – ao menos para mim…
Recomendou tomar cuidado, conferir o troco e trazer a nota fiscal.
Missão dada, missão cumprida.
A loja eu não lembro mais o nome. Era de esquina; grande, tradicional, e durou talvez até o meio da década de 1990. Ficava na Rua Direita, próxima à Praça da SE’ , no centro de São Paulo.
Os discos? Eu recordo de LPs de três artistas: THE MAMAS & THE PAPAS; FRANK SINATRA e MATT MONRO;
E, também, o inesquecível compacto do PROCOL HARUM, “A WHITER SHADE OF PALE”. Estava tocando, quando cheguei. Era hit estourado! Achei bonito, diferente.
A conjunção astral da “poesia” de KEITH REID, letrista exclusivo da banda, com a música de GARY BROOKER e MATHEW FISHER, resultou em canção de amor em versos sujeitos a várias interpretações; mais climas e sugestões misturados a um certo mistério tipicamente inglês.
A parte instrumental foi baseada em “AIR ON THE G STRING”, de BACH, com destaque absoluto e indissociável para o ÓRGÃO HAMMOND de FISHER, e o vocal BLUESY de GARY BROOKER.
E consolidou-se um fenômeno que ultrapassou a seguinte história contada por PETER BROWN, quando entregou a letra de “SUNSHINE OF YOUR LOVE” – a canção símbolo do CREAM – para JACK BRUCE compor a música.
PETE fez o seguinte comentário: “Cara, esta vai pagar o aluguel da gente para o resto da vida”!
Pagou e ainda paga!
Agora, imaginem “A WHITER SHADE OF PALE”, peça sofisticada em plena transição entre o ROCK PSICODÉLICO e o PROGRESSIVO, e totalmente inserida no clima “hippie” daqueles tempos, com trajetória histórica e muito mais popular????
A canção tomou dinâmica própria, e tornou-se fenômeno cultural de proporções avassaladoras: acima de dez milhões de SINGLES vendidos; mais de mil regravações; milhões de discos vendidos, em vários formatos e épocas!
E, glória suprema: é a canção mais executada em todos os tempos no REINO UNIDO!
Com “BOHEMIAN RAPSODY”, do QUEEN, ambas foram eleitas os melhores SINGLES da história por aqueles recantos!!!!
A HISTÓRIA E O RITO
O PROCOL foi sucessor modificado dos PARAMOUNTS, que gravou e atuou entre 1963 e 1965. Era uma “BEAT BAND” inglesa na linha do R&B de grupos como ROLLING STONES, MANFRED MANN, ARTWOODS e tantos e vários. Tiveram pouco sucesso, mas eram bem legais!
O PROCOL HARUM foi estruturado sobre o núcleo voz, piano, órgão, guitarra; e, claro, imprescindíveis baixo e percussão.
O diferencial da banda sempre foi a integração conseguida com magistral competência pelo uso de orquestra e coro. O PROCOL HARUM esteve entre as poucas bandas que fizeram a transição do BEAT ROCK à PSICODELIA, como THE ZOMBIES e os HOLLIES; e, daí para o ROCK PROGRESSIVO, tais quais os MOODY BLUES e o MANFRED MANN (EARTH BAND).
A figura principal, o líder, era GARY BROOKER; bom pianista e arranjador, além de belíssimo e versátil cantor de R&B, SOUL, e BLUES, cujo timbre vocal lembrava RAY CHARLES, seu ídolo supremo.
BROOKER sempre deu o colorido suis-generis e notável às várias formações do PROCOL, onde imprimiu a sua personalidade marcante por tudo o que fizeram, inclusive um pouco de FOLK. Ele e banda desaguaram principalmente no ROCK PROGRESSIVO em suas variadas formas.
Mas, não pensem que era uma banda do “AMOR, O SORRISO E A FLOR”. Ao contrário: a música é lúgubre e pesada. A sonoridade em geral tende ao grave, e ao sujo. O órgão de MATHEW FISHER, ou sucessores, lembra JON LORD, no DEEP PURPLE; distorcido, “sério”.
E a guitarra de ROBIN TROWER até hoje, mais de meio século após ter saído da banda, mantém “aquele som” algo solene e “discreto”; e sem humor…
Para ter uma ideia, o biógrafo da banda disse que MATHEW FISHER saiu porque não aguentava mais letras sobre morte, caixões, naufrágios e desgraças em geral!
O PROCOL HARUM ideologicamente estava longe do FLOWER POWER. Entre 1967 e 1973 chegou à fase áurea. Gravaram 7 LONG PLAYS magníficos: PROCOL HARUM, 1967; SHINE ON BRIGHTLY e A SALTY DOG, 1968; HOME, 1970; IN CONCERT WITH EDMONTON SYMPHONY ORCHESTRA, 1971; BROKEN BARRICADES, 1971; e GRAND HOTEL, 1973.
Durante a saga tiveram de enfrentar concorrência em nível do FOCUS, THE NICE; EMERSON, LAKE & PALMER; KING CRIMSON, JETHRO TULL, RENAISSANCE, YES, GENESIS, os MOODY BLUES, e diversos que souberam muito bem o que fazer com a inspiração da música clássica – e além dela. Era mundo e tempo de gigantes!
O excelente guitarrista ROBIN TROWER que, aos poucos, vinha assumindo maior protagonismo, saiu para bem sucedida carreira solo, em 1971. E permanece firme e relevante! E lúgubre!
O RITO, A SAGA E O DECLÍNIO
O PROCOL HARUM perseguiu a fusão entre o melhor da base legada pela BLACK MUSIC, principalmente o vocal de BROOKER, e as diversas possibilidades do ROCK PROGRESSIVO. Era mais SINFÔNICO do que EXPERIMENTAL.
Em seus discos havia “MINI SINFONIAS”, como “For Liquorice Joe”, “Conquistador”, “Quite Rightly So”, “Fires”, “A Salty Dog”, “Wreck of the Hasperus”, “Whaling Stories”, “Shine on Brightly”, “Broken Barricades”, “The Worm & the Tree”, etc….
Inclusive “HOMBURG”, o SINGLE que sucedeu ” A WHITER SHADE O PALE…”, em 1967. Música belíssima, e ainda mais densa e interessante. A letra espetacular descreve o fim de um caso amoroso, abandono e a depressão!
É a minha predileta em toda a discografia!
O pessoal do QUEEN e do WHO eram fãs do PROCOL HARUM!
GARY BROOKER conta que BRIAN MAY lhe explicou que na estrutura de “BOHEMIAN RAPSODY”, o QUEEN comprimiu várias ideias para caberem em 6/7 minutos de gravação”; bem ao estilo do PROCOL HARUM. E que a ideia do grande hit do QUEEN foi inspirada em WHALING STORIES, do álbum HOME, 1970, quarto LP do PROCOL.
PETER TOWNSHEND falou coisa semelhante sobre “TOMMY”. Não a ideia de uma ÓPERA ROCK, ou melhor, ÁLBUM CONCEITUAL. Mas, que a estrutura geral foi baseada em “IN HELD TWAS IN I”, faixa longa e PROGRESSIVA do LP SHINE ON BRIGHTLY, de 1968, o segundo e, para mim, o melhor LP da banda.
Ouvindo com atenção, é perfeitamente perceptível. Não são plágios ou cópias, mas a forma criada para o desenvolvimento de cada projeto, e os diversos elementos em comum.
Coisa típica de quem estudou o que existia e se inspirou. É comum nas artes; e recorrente na vida.
O PROCOL continuou fazendo bons discos, mas sem a criatividade anterior. EXOTIC BIRDS AND FRUIT, 1974; E um retorno ao PROGRESSIVO “modernoso”, “ma no troppo”, incluindo sintetizadores em SOMETHING MAGIC, lançado em 1977.
Houve uma quase exceção ao estilo em PROCOL’S NINTH, 1975, um passo em direção clara ao R&B, com a produção dos consagrados JERRY LIEBER & MIKE STOLLER, grandes “fazedores” de hits na BLACK MUSIC.
Não é de estranhar. Em meados da década de 1970, tanto SANTANA quanto BOB MARLEY faziam sucesso e influenciavam cabeças e paixões. Tudo se intercomunica, se a gente prestar devidas atenções….
A revista RECORD COLLECTOR perguntou a GARY BROOKER, em junho de 2009, qual o melhor show que ele havia assistido na vida?
Resposta na lata: BOB MARLEY & THE WAILERS, AT LONDON HAMMERSMITH ODEON!
TIO SÉRGIO explica: o REGGAE é música negra de base. É o R&B em fusão como o “jingado” latino!
Então, nesse nono LONG PLAY estão PANDORA BOX, uma “GUAJIRA” cubana algo… hum… “PROG”; e uma versão matadora BEAT/R&B de “EIGHT DAYS A WEEK”, single clássico dos Beatles. Entre outras músicas todas tendendo ao R&B e SOUL.
Ora, no vocal há GARY BROOKER, um BLACK SINGER de primeira linha!
GARY BROOKER colocou o PROCOL HARUM em “stand by”, em 1978. E saiu para carreira solo, e diversas contribuições em discos de outros artistas: esteve com GEORGE HARRISON, THE HOLLIES, KATE BUSH, ALLAN PARSONS, etc.., e principalmente, ERIC CLAPTON, de quem era amigo íntimo de fazer pescarias juntos. GARY salvou CLAPTON da morte por consumo de drogas. É verdade!
BROKER gravou 3 discos solo em estúdio: “NO MORE FEAR OF FLYING”, 1979; “LEAD ME TO THE WATER”, 1982; e “ECHOES IN THE NIGHT”. Todos, claro, pescando na fonte do R&B, mas cozinhados na “modernidade”. Há, também, um disco ao vivo raro, em edição limitada e já esgotada.
Em 1991, o PROCOL HARUM retomou a carreira com THE PRODIGAL STRANGERS; Em 2003, saiu THE WELL´S ON FIRE; e o último, NOVUS, foi lançado em 2017. Como sempre, bons e coerentes com a história da banda. E, seguindo talvez um “auto conselho”, vieram à luz espaçados no tempo para ver no que dava…
SHOWS AO VIVO E RESURREIÇÃO
Sempre foi no palco que o PROCOL HARUM comprovou a excelência. Algo não muito comum na seara do ROCK PROGRESSIVO, mais dado a pesquisas, complexidades e até frescuras.
A banda fez shows espetaculares!
BROOKER foi profissional exigente e grande BANDLEADER. Sabia fazer a banda render o máximo, e destacar a beleza musical contida em cada obra. Está evidente em quaisquer dos shows, sempre variados, densos e instigantes. Há muitos disponíveis em vários formatos.
O primeiro disco ao vivo, e quinto LP do grupo, existe apenas em VINIL E CDs. “IN CONCERT WITH THE EDMONTON SYMPHONY ORCHESTRA”, gravado no CANADÁ, 1971, é sensacional para dizer o mínimo!
A qualidade da captação, mixagem e produção é em estado da arte. A integração total da banda com a orquestra e o coro é um primor técnico e artístico! GARY BROOKER, como sempre, está em excelente forma. E detalhe curioso: o vocal estava mais adequado ao ROCK PROGRESSIVO, por assim dizer…soa menos BLUESY.
Os dois DVDS da foto são MONUMENTAIS: a modernidade lavrada para o eterno.
Em “LIVE AT THE UNION CHAPEL”, 2004, é a banda “pura”, sem acompanhamento de orquestra. Música popular em estado da arte. Viva e pulsante. Eles conseguem sair de um ROCK PROGRESSIVO, “SHINE ON BRIGHTLY”, para uma deliciosa e dançável GUAJIRA CUBANA, em “PANDORA BOX “, com refrescante naturalidade!
No decorrer do DVD, o repertório PROGRESSIVO vai desfilando magistralmente; e há sessão de BLUES e ROCK de todos os tipos. Tudo realizado em alto nível técnico e artístico. O guitarrista GEOFF WHITEHORN, BROOKER, FISHER e o restante da banda dão show!
Em outro DVD, a banda vem acompanhada por ORQUESTRA SINFÔNICA E CORO, em concerto nos jardins de um CASTELO NA DINAMARCA.
“IN CONCERT WITH THE DANISH NATIONAL ORCHESTRA & CHOIR”, foi gravado em 2009. É de beleza plástica e musical, comprovando a histórica compatibilidade à proposta artística da banda conseguida ao longo de quase 50 anos.
A música do PROCOL HARUM é densa, pesada, e suporta arranjos orquestrais. Mas, não tem profundidade para transcender o ROCK. Tudo fica evidente em um projeto curioso, lançado em 1995, pela gravadora BMG:
“SYMPHONIC MUSIC OF PROCOL HARUM”, traz a formação da época: BROOKER; GEOFF WHITEHORN, guitarra; DAVE BRONZE, baixo; MARK BRZEZICKI, bateria. Estão Juntos com orquestra regida por NICHOLAS DODD, e pelo velho conhecido da turma do ROCK PROGRESSIVO, o tecladista e maestro DARRYL WAY.
Há convidados ilustres, como o grande flautista JAMES GALWAY; os guitarristas ANDY FAIRWEATHER-LOW e ROBIN TROWER.
E, curiosamente, TOM JONES canta SIMPLE SISTER, música pesada e algo tétrica que fala sobre “tosse comprida”, um flagelo sanitário na metade do século XX. Ficou bom? Talvez…
MEMÓRIA E CULTO
GARY BROOKER recebeu o título de “SIR”. Em 2003 foi indicado para o “ORDER OF BRITISH EMPIRE”, como ELTON JOHN, PAUL McCARTNEY, JIMMY PAGE, JEFF BECK. Vários artistas também já receberam.
Perguntaram a GARY onde esperava estar quando se aposentasse?
Ele respondeu: “em algum lugar quente, com a minha mulher”.
GARY conheceu a suíça FRANÇOISE RIEDO, a FRANKIE, em 1965. E se casaram, em 1968. Não fizeram filhos. E, permaneceram juntos até a morte dele.
Ele saiu do palco para o nosso eterno pesar e memória.
GARY BROOKER.
POSTAGEM ORIGINAL: 27/02/2020
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