Vou começar por uma historinha meio cafajeste.
Até uns 15 anos atrás, alguma conversa imprópria era admissível em rodas masculinas. Vez por outra, confissão de ousadias, ou meros comentários sem fundamentos apareciam após ingestão excessiva de álcool.
Numa dessas, a moça chegou e cumprimentou geral; beijou alguém no grupo, e foi embora.
O incerto alguém comentou olhando o rastro do rabo do cometa que partira; “pois, é: era linda! Hoje, virou nome possível pra música do JOÃO DONATO: “EMBARANGÔ”!!!
Alguns risos, e sei lá se alguém compreendeu a “metonímia sórdido-sofisticada”: O DONATO tem música chamada “EMORIÔ”, o nome sonoro de um de seus clássicos, e que nada tem com o
neologismo criado pelo colega.
Embarangar, viria de baranga… uma ofensa injustificável sob qualquer pretexto…
Voltando à parte séria do meu discurso, postei aqui os discos que tenho dele. Talvez insuficientes para forjar uma ideia mais clara da produção artística do JOÃO. Mas, vou tentar..
Talvez seja adequado dizer que os dois pianistas mais importantes da MPB contemporânea tenham sido TOM JOBIM com suas harmonias. E JOÃO DONATO e sua visão alargada, e capacidade de criar ritmos e andamentos através do instrumento.
Assim como os violonistas JOÃO GILBERTO e ROBERTO MENESCAL pela paternidade e difusão da moderna MPB.
JOÃO DONATO era um músico superdotado.
Mas, não gostava de poesia, da mesma forma que o poeta JOÃO CABRAL DE MELO NETO não ligava para música. CABRAL era indivíduo sério, escrevia seco e pungente.
DONATO era musical, intuitivo, leve e solto. E teve diversos parceiros de escrita. Alguns geniais como CAETANO VELOSO, GILBERTO GIL, VINÍCIUS DE MORAES e CHICO BURQUE de HOLANDA.
O que faltava para DONATO sobrava em seus parceiros, e vice-versa. E a ponto de CAETANO ter feito música citando veladamente, em versos precisos, os dois “JOÃOS”.
O dom da palavra conjugado à constante e inevitável presença da música é essencial para os brasileiros.
Porém, JOÃO DONATO não canta bem. Jamais cantou. Tem voz inexpressiva, inadequada; o que também não importa – é só minha opinião. O seu forte foi a composição e os arranjos musicais que fez. Ele intuía melodias e ritmos.
No 39 DISCOS de série que gravou, ele canta em diversos. O primeiro deles é “QUEM É QUEM”, gravado em sua volta ao Brasil, em 1973.
DONATO é caso único de artista brasileiro que iniciou sua carreira nos EUA tocando LATIN JAZZ. Foi no grupo de “MONGO SANTAMARIA”, em 1965. Quando saiu foi substituído por ninguém menos do que CHICK COREA!
JOÃO já gravara no Brasil acompanhando outros artistas. Porém, o início de sua carreira solo foi em 1962, com o “JOÃO DONATO e seu TRIO”, formado por dois excelentes e históricos músicos: o baterista MILTON BANANA, e o baixista TIÃO NETO; talvez a mais eficiente “cozinha” que o SAMBA-JAZZ produziu!
“MUITO À VONTADE”, 1962; e “A BOSSA MUITO MODERNA DE JOÃO DONATO”, 1963; foram captados na mesma sessão de gravação, antes da partida de JOÃO para a América, e aproveitar o BOOM aberto pela BOSSA NOVA. São dois artefatos CULTS da BOSSA INSTRUMENTAL.
Nos Estados Unidos, ele gravou um clássico da BOSSA-JAZZ, “BUD SCHANK e JOÃO DONATO”. E, também em 1965 fez um de seus discos mais conhecido: “THE NEW SOUND OF BRAZIL, PIANO OF JOÃO DONATO”, com a participação do guitarrista LUIZ BONFÁ, outro CRAQUE de sucesso na AMÉRICA.
O LP. veio na cola do grande sucesso conseguido por “ANTONIO CARLOS JOBIM, THE COMPOSER OF DESAFINADO PLAYS” , 1963, disco de BOSSA – LOUNGE, com TOM ao piano e violão.
Os dois discos seguem modelo semelhante, e são acompanhados por orquestra regida pelo famoso maestro e arranjador CLAUS OGERMAN, de extensa carreira em gravações de SINATRA a DIANA KRALL…
JOÃO comentou que OGERMAN ligou de madrugada pra ele no Hotel. E fez algumas consultas sobre as músicas que entrariam no disco a ser gravado no dia seguinte. Ainda faltavam quatro arranjos!
Então, DONATO pergunta: “Mas CLAUS, os arranjos ainda não estão prontos? É daqui a algumas horas!!! Como é que você vai fazer”?
E o MAESTRO responde: “Fica tranquilo, é fácil”. “Eu sempre escrevo a primeira ideia que me vem à cabeça…”
JOÃO DONATO, que era um intuitivo antenado e perspicaz, concluiu para a vida: Pra conseguir isso “É PRECISO ESTAR PENSANDO BEM O TEMPO INTEIRO”…
E este era o segredo dele para as coisas darem certo “espontaneamente”, e com leveza… JOÃO DONATO PENSAVA BEM O TEMPO TODO!
DONATO era curioso, aberto a experimentações e passeios pela vanguarda. Mas sempre mantendo seu estilo imediatamente reconhecível, aprimorado ao longo de anos em busca da eficiência, do ritmo e do andamento adequado; e de maneira inventiva, e talvez única!
É argumentável que DONATO tenha criado um híbrido original. Um tipo de FUSION mais ampla, abarcando o JAZZ MODERNO, o LATIN JAZZ e a BOSSA NOVA; com de algo FUNK, dançável, e pitadas de SOUL e música AFRO-CUBANA. Um “COMBO” ao alcance de poucos.
O uso de metais era essencial, e ajudou a introduzir DONATO em vários cenários, em épocas diferentes, à partir de meados da década de 1960, até pouco antes de morrer.
Seu personalíssimo teclar no piano se manteve intacto. O jeito de trabalhar com o silêncio e os espaços entre notas e acordes, e de relacionar-se com outros músicos e instrumentos da banda permaneceram modernos, inconfundíveis!
A música que ele faz é dançável desde sempre, e seu balanço é contagiante, e alto astral. DONATO mesmo sendo bossanovista de primeira hora, caminhou fora de certa melancolia que a BOSSA NOVA nos inculca.
Ele é um levantador de festas sofisticado e imprescindível! O banquinho e o violão ficaram para o outro JOÃO, o GILBERTO, amigo dele.
JOÃO DONATO há décadas veio desenvolvendo a prática em diversas modalidades de teclados eletrônicos, como FENDER RHODES, FARFIZA, o CLAVINET… e o que mais viesse.
Sob esse aspecto, nos lembra seu contemporâneo ao longo dos tempos, HERBIE HANCOCK, que também surfou em todos os mares e ondas com proficiência, originalidade e qualidade.
EM 1970, foi lançado “BAD DONATO”. Em 1973, fez LP em parceria com EUMIR DEODATO – músico de enorme sucesso internacional naquele ano. Ambos são discos de FUSION JAZZ, o gênero em franca ascensão, que DONATO já vinha moldando, assimilando e fazendo à sua maneira. Esteve na primeira hora de várias coisas!!!
A originalidade da música de JOÃO DONATO atraiu artistas importantes e a realização de muitas parcerias. Para citar algumas, trabalhou com MENESCAL, JOYCE, WANDA de SÁ, PAULO MOURA, CARLOS LYRA, MARCOS VALLE, JORGE BEN, TOQUINHO e até JARDS MACALÉ. Ele gravou bastante nos últimos 40 anos. É artisticamente um dos artistas mais influente da história musical brasileira.
O disco ao vivo LEILÍADAS, 1986, é um exemplo de FUSION moderna, com metais e, observado mais de perto, talvez seja possível considera-lo álbum “CONCEITUAL”. É muito bonito!
De meados para o final da década de 1980, a BOSSA NOVA teve retomada forte, principalmente na EUROPA, e D.JS redescobriram o óbvio: que REMIXAR, SAMPLEAR, FUNDIR e RETRABALHAR o que fizeram seus principais criadores poria a turma para dançar.
O trabalho dos D.Js. trouxe JOÃO DONATO aos PICK-UPS em festas, clubes, e a validação para o JAZZ e outras fusões já testadas.
Ele foi muito sampleado. E coligido em miscelâneas como essas da foto. Existem mais, muito mais, ressuscitando artistas esquecidos.
Já em discos como “PAULA MORELEMBAUM & JOÃO DONATO”, 2010; e “DONATO ELÉTRICO”, 2015, ele tocou à vontade com os participantes mais jovens, tipo seu filho DONATINHO, e os grupos “PARAPHERNALIA”, “BossaCucaNova”, e gente que acompanha as cantoras CÉU, TULIPA RUIZ e ANELIS ASSUMPÇÃO.
Todos são fãs e o admiram; conhecem os discos, os experimentos, e principalmente a capacidade de JOÃO DONATO em traduzir suas ousadias para um estilo de linguagem musical brasileira, mesmo que eivada por outras latinidades e seu gosto pelo JAZZ. É a FUSION com roupagens contemporânea garantindo a perenidade.
E, dali em frente, até o seu último disco, lançado em 2022, aos 88 anos, ele continua festejante: um “latino-brasileiro” da gema!
JOÃO DONATO encerrou sua permanência entre nós talvez no ápice da vanguarda jovem atual.
Ahhhh, EMORIÔ não é palavra, e sim uma frase, que significa “EU VEJO” : “E MORI O” , em IORUBÁ é uma referência a OXALÁ, a divindade relacionada com a criação do mundo e da espécie humana.
É frase existencial e poeticamente muito delicada e perceptiva.
EMORIÔ! JOÃO DONATO fazendo muita falta.
POSTAGEM ORIGINAL: 18/07/2023

POSTAGEM ORIGINAL: 18/07/2023
